Casa de banho Paço Imperial, 2001

A História do Mármore de Angela Freiberger

Da cena, restou a mobília. Uma lembrança arcaica da estatuária, que de sua passagem deixou leves rastros na pedra fria. O corpo que, um dia marcou o mármore, agora é um fantasma. Perambula nessa sala do inconsciente e precisa do peso da matéria para anunciar a sua ausência. Quem o libertou foi um banho, um mergulho, depois o sono e a fada Mabe. Purgou todos os pecados, num ritual de purificação, e foi passear, sonâmbulo, no vernissage, indiferente à multidão que bebia e falava. No banho, não buscou a inocência: queria apenas a leveza do movimento e transferiu para as peças estáticas toda a rigidez e a memória. Não lhes deu a escala monstruosa de uma Louise Bourgeois; ficou no Alentejo, trabalhando numa dimensão doméstica; por isso, esse aspecto familiar, de uma poesia íntima que sussura, delicada, uma mão, um braço, um ombro. As pedras têm a alvura tracejada pelos fios vermelhos do amanhecer. Cruzou o Atlântico em companhia do filósofo dançarino, que ela havia, num momento, transformado em fotógrafo, e voltou ao Brasil. Seguiu o caminho para o Alto da Boa Vista, aos pés das montanhas da cidade do santo mártir, aquele do corpo sangrando, atado ao tronco, varado pelas flexas de seus algozes, e meteu-se na indústria entre máquinas, pó e barulho. Lá de cima, se apertasse bem os olhos, além-mar, veria a África e o sacrificio do rei. Mas não quer esse espaço imenso de oceano e história porque seu vazio é outro. Aquele do corpo que sai, se retira no sono e abre as portas para os acontecimentos importantes. No entanto, quando acorda, só vê as marcas no mármore – pés, mãos, braços, ombros, os restos do sonho –, e sente todo o peso do esquecimento na pedra. Depois do banho, do passeio, pensou numa refeição de pratos imensos onde a comida, invisível, seria posta do lado de fora, sobre a mesa, em volta, e todos olhariam só os pálidos discos, absolutamente planos e opacos como espelhos absolutos do nada. Prestando atenção, viu que construiu uma casa, feita de banho e refeição. Satisfeita, na banheira, quase cama, descansa. E, de novo, sonha com a próxima cena. Essa é uma das muitas histórias dos mármores de Angela Freiberger, que se conta lá em Carrara, na Itália, terra das gentes que há séculos trabalham com a pedra. Ela pode ser narrada de muitas outras maneiras. Conheço um crítico que prefere inscrevê-la no repertório da arte contemporânea e sua vertente feminista, numa dessas interpretações que destitui a arte da questão artística para transferi-la a um plano multicultural onde os conteúdos substituem toda a questão da forma. Mas não resiste e fala da ausência de viscosidade do líquido vermelho (na verdade, xarope de groselha diluído em água), em que a artista se banha, como metáfora dos sanguíneos, desenhos renascentistas que inventaram o corpo feminino nos esboços de grandes artistas que nunca tinham visto uma mulher nua. Ou não era bem por este gênero de corpo que se interessavam. É uma viagem possível. Outro rigoroso formalista, sublimado no seu recalque teórico, não vê nada além de um problema de arquitetos decoradores de banheiros. Nele, a arte está atada a uma história precisa de práticas específicas. Alcançados os paradigmas construtivos e expressivos, nenhuma obra escaparia ao impasse: ou se conforma ou não se forma. Há ainda o pesquisador histórico; este constata, documenta e enquadra, não julga, porque não é um critico. E, sobretudo não pode falar do que está tão perto, sempre precisa de distância. Os mais cômicos são os que estão sempre escrevendo a sua lista dos “dez mais”. Para eles é difícil entender a arte de Angela que é feita de mármore, de vídeo e de performance, e é mais que esses três meios nos quais se materializa.

Paulo Sergio Duarte, Rio de Janeiro, outubro, 2001