By Denise Carvalho – Página Crítica é uma coluna mensal no sítio da UniversidArte, escrita pela crítica e curadora de arte contemporânea Denise Carvalho. O objetivo da coluna não só é o de refletir sobre questões estéticas e sociais na arte contemporânea, como também o de identificar na linguagem artística um papel crítico. A arte contemporânea ultrapassa tradições acadêmicas e formalistas, mas não nega as suas raízes, redefinindo processos e conceitos, e mostrando uma constante releitura de códigos estéticos. Seja local ou global, ela se identifica com posições subjetivas e sociais, e sua proposta vai muito além de uma simples representação ou da mera possibilidade de vir a ser um produto de mercado.
Denise Carvalho é crítica de arte para revistas americanas como Sculpture, Flash Art, NKA – Journal of Contemporary African Art, e outras, e curadora independente, tendo organizado várias exposições multimídia como “Fairy-Tale,” no Center for Metamedia, na República Tcheca em 1999, com 26 artistas do mundo todo, enfocando o tema da subversão de estruturas lineares nas artes plásticas; Hybrid Dwellings (Habitações Híbridas), na National Gallery em Bialystok, Polônia, em 2001; e RAW, no espaço cultural Smack Mellon, em Nova York em 2003. Sua educação inclui mestrados em História da Arte, Antropologia, e Estudos Culturais. Denise Carvalho é doutoranda em Estudos Culturais e leciona na Universidade da Califórnia, em Davis. Ela vive e trabalha nos Estados Unidos há quase 20 anos, 17 em Nova York e os três últimos na Califórnia.
Angela Freiberger: Redefinindo o Espaço do Corpo
As esculturas de Angela Freiberger lidam com três dimensões espaciais, uma do espaço fixo da escultura, ao redor da qual o espectador faz a sua trajetória de observação, a outra do espaço móvel da arquitetura como extensão do objeto escultural, e uma terceira que une o objeto ao movimento performático. O início dessa conjunção entre a escultura, a arquitetura e a performance foi na série de recipientes, iniciados no final da década de 90. A preocupação original era a de adicionar leveza ao mármore dos recipientes, utilizando o espaço negativo arquitetônico ao positivo da forma, e esta era uma preocupação escultural. O contato do corpo da artista à forma, apesar de se apresentar como casual e instintivo e podendo até ser interpretado como uma tendência de ordem sensorial, do tato, também é parte de um vocabulário contemporâneo que enfoca as tendências de inclusão do corpo à experiência arquitetônica como crítica de uma arte puramente contemplativa. Apesar de que, no trabalho de Freiberger, esta tendência dinamiza duas vertentes de postura estética: uma que questiona a posição do corpo como extensão do objeto de arte, implicando assim a possibilidade do lado subjetivo do corpo ao objeto da obra, e outra que identifica a importância da linguagem tradicional, até arcaica, na obra contemporânea. Esta segunda linguagem é vista através das referências do mármore às esculturas figurativas tradicionais e aos objetos funerários como ânforas, vasos, e recipientes greco-romanos. Esta referência nas oferendas ligadas á morte contrastam a própria tendência performática que enfatiza o corpo vivo e mutante.
A série de recipientes de mármore Carrara com títulos como Mulher lavando a alma, Mulher com Veste de Pedra, Mulher Carregando Local da Cabeça, O Violino de Man Ray, e Mulher Segurando o Local dos Dedos, todos feitos em 1999, traduz um trabalho de correspondência entre escultura e performance. Nesta série, também, há uma correspondência entre a dramaticidade do teatro nos títulos das obras e o congelamento da imagem na documentação fotográfica. Uma das questões neste sentido é a da reprodutibilidade da obra como documento fotográfico ou de vídeo, que na maioria das vezes se dá como possibilidade na reprodução do momento performático. Diferente do teatro, no qual o performático é vivenciado como espetáculo, a performance artística de Freiberger se situa no momento transitório e casual, dando uma dimensão altamente feminina à sua linguagem fragmentária. Porém, no que se trata do congelamento das imagens em fotografia como documento do trabalho de arte, o transitório aparece com uma imagem permanente, implicando a importância do olhar contemplativo e reflexivo dos princípios estéticos formalistas. Este congelamento do olhar da fotografia também existe no contexto temporal da performance, que é lento e reflexivo. Esta intertextualidade de discursos distintos na arte contemporânea é centralizada pelo fator de conflito, de tensão, e de negociação de vertentes estéticas inegociáveis, que são indispensáveis para uma constante leitura do novo, do de cunho local, do imediato, e do experimental, numa arte madura e de qualidade, sem se desfazer de discursos formalistas que legitimam a autonomia do diálogo artístico na sociedade.
A intertextualidade entre discursos específicos da escultura, pintura, fotografia e performance é traduzida pela extensão dos significados iconográficos através das épocas, como as tatuagens no corpo da artista que se referem à obra fotográfica de Man Ray “O Violino de Ingres” (1924), que por sua vez também referencia o pintor dois séculos anterior a este, conectando assim presente e passado, arte neoclássica e moderna. A relevância dadaísta e surrealista do trabalho de Man Ray na escultura e performance de Freiberger não se limita à referência iconográfica da forma do f’83 tatuado no próprio corpo da artista, mas no uso da conjunção entre negativo e positivo usado por Man Ray na fotografia através da “rayografia”, técnica de fotografia contínua ou fotograma sobre papel de alta sensibilidade resultando numa revelação parcial ou solarização da imagem em que o negativo se justapõe ao positivo. Este conceito é traduzido através da fragmentação do positivo e negativo da forma escultural, apresentando esculturas das esculturas, ou usando a idéia de substituição entre dentro e fora, fôrma e massa. O próprio corpo escultural da artista como escultura viva traduz uma releitura da performance com raízes dadaístas quebrando princípios acadêmicos voltados para a escultura, unindo o olhar à interatividade do corpo, o objeto à subjetividade do momento imediato.
As linguagens entre pintura, arquitetura, e escultura também se dão nas formas circulares gravadas dentro ou fora dos recipientes, como é o exemplo de uma espiral desenhada no pó de mármore na parte mais funda da peça Lavabo da Alma (1999), que é a fôrma do ventre da artista, que no espaço é invertida como recipiente. Aqui também iconografias femininas e masculinas se interpõem, como também se interpõem o dentro e o fora do corpo (a pele e os órgãos, vísceras e fluidos), o yin e o yang, o fragmento e o todo, a escultura e o espaço arquitetônico. O masculino e feminino podem ser interpretados até mesmo em relação à condição física do mármore, em termos da sedimentação, de sua pureza e unidade, ou da fragmentação e oxidação deste.
As esculturas de Freiberger passam a ser invólucros do corpo em peças como Casa de Banho (2001), em que a escultura é o referencial do corpo no espaço do banho. A instalação e performance é constituída de uma banheira, um bidê e um lava-pés, que tem marcas esculpidas do corpo da artista. No bidê, vê-se as marcas de nádegas em baixo relevo, no lava-pés, a marca de dois pés, e na banheira, as marcas de um braço e uma perna. As peças são de mármore rosa de Portugal, dando um aspecto feminino ao mármore. O lava-pés e o bidê foram adquiridos pelo colecionador João Sattamini em comodato com o Museu de Arte Contemporânea de Niterói. O tema da mulher no banho é visto em inúmeros trabalhos de arte moderna e clássica, como em Renoir, Degas, Courbet, Bonnard, Gauguin, Cézanne, Picasso, e outros. Porém, em Freiberger, a presença performática da mulher é transitória, enfocando exatamente aspectos mais sombrios ás esculturas, como referências à dor, à solidão, ao abandono, e até mesmo à morte. Nestas esculturas de aspecto límpido e de qualidade escultural impecável distribuídas no espaço vasto da galeria, há uma sensação de vazio e de perda, como um memento mori ao corpo ‘vivo’ da mulher. A questão da ambigüidade entre morte e vida no trabalho de Freiberger pode ser vista também nas instalações de inúmeras ânforas ou vasos pelo espaço arquitetônico ou nos líquidos coloridos que se assemelham a fluidos do corpo colocados dentro de recipientes. No vídeo Sora (1998), a artista banha-se com suco de groselha que é entornado numa banheira de metal.
A referência com urina também pode ser puramente conceitual, como na instalação Coleção de Penicos (2001), que esteve à mostra numa exposição no Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho em 2002.
Nela, a referência com os penicos é discursada através da interação entre a instalação de uma série de penicos romanos antigos em mármore de Portugal e o filme O Leopardo, de Luchino Visconti, mostrando uma cena do filme em que o personagem representado por Burt Lancaster entra num mictório. Freiberger criou a série de pinicos baseando-se na cena do filme e os pinicos são réplicas do que se vê na cena. Na exposição, a cena é reconstruída junto a um espaço arquitetônico semelhante, no qual o espectador reproduz a entrada do ator no mictório. Os penicos também foram adquiridos pela coleção João Sattamini. O filme narra as revoltas que levam às mudanças de poder com a queda da aristocracia e a ascensão da burguesia no sul da Itália em 1860. O mictório significa o espaço real num momento histórico em que tudo é aparente. É o refúgio do personagem após sua constatação de que o fim dos valores de uma época reflete também a sua própria mortalidade.
Uma outra performance no mesmo espaço cultural chamada O Banquete (2002) também referencia o cinema surrealista. Filmes como A Comilança (1973) de Marco Ferreri com o espanhol Rafael Azcona, e o filme O Charme Discreto da Burguesia (1972) de Luis Buñuel, são exemplos do ato de comer como subversão às regras morais. Na performance de Freiberger, uma modelo vestida com um avental de voille se ajoelha numa posição fetal sobre uma mesa de banquete, juntando-se aos pratos e travessas de mármore e a vários pêssegos esparramados pela mesa. Ao redor da mesa, os espectadores participam do banquete comendo com os olhos. Vinte minutos depois, a modelo colhe os pêssegos em seu avental e os oferece aos espectadores. A performance me lembrou de um texto de Rubem Alves sobre o filme de Gabriel Axel, A Festa de Babette (1987) em que o autor fala sobre o prazer do olhar quando passeia pela feira, comparando o olhar do caçador ao do vagabundo. Ele diz, “Alterno o olhar caçador com o olhar vagabundo. O olhar vagabundo não procura nada. Ele vai passeando sobre as coisas. O olhar vagabundo tem prazer nas coisas que não vão ser compradas e não vão ser comidas. O olhar caçador está a serviço da boca. Olham para a boca comer. Mas o olhar vagabundo, é ele que come. A gente fala: comer com os olhos, é verdade. Os olhos vagabundos são aqueles que comem o que vêem. E sentem prazer”.1 O comer com o olhar também é uma especialidade das artes plásticas, utilizado como ferramenta de poder. O olhar vagabundo do espectador come sem possuir, come o objeto do desejo seja ele arte ou um corpo de mulher.